sábado, 2 de dezembro de 2023

Armadilha do tempo


Estava chegando aos setenta e seis. Sentia-se ligeiramente melhor que nas últimas semanas. Os males da velhice incomodavam um pouco menos. Não deu muita atenção ao fato, mas, à medida que o tempo passava, a sensação de rejuvenescimento aumentava.

Passados alguns meses, percebeu que personificava a ficção de F. Scott Fitzgerald: a reversão do tempo. As mudanças físicas foram ficando evidentes. Ao perceber que começara a despertar a curiosidade dos moradores da cidade onde morava, resolveu mudar para onde ninguém o conhecesse. Sozinho como era, nada o prendia a lugar nenhum.

As transformações se aceleraram. As sensações oscilavam entre o espanto e a euforia. Era extasiante desfrutar, ainda com o viço da juventude, da experiência adquirida nos diversos ciclos de sua existência.

Com o passar dos anos, voltou à adolescência e, mais ou menos à época em que começou a pensar em como seria a sua morte – Benjamin Buttom morreu ao nascer – o relógio do tempo inverteu novamente. Voltava a envelhecer.

Assim se passaram anos, décadas. O relógio do tempo não mais era uma ampulheta, mas um pêndulo. Juventude, maturidade, velhice, novamente maturidade, juventude...

Talvez ficasse assim pra sempre.

Não estabelecia vínculos. Qualquer ameaça disso ocorrer o fazia mudar novamente, sumir do mapa, cada vez para mais longe.

Outra consequência desse estranho ir e vir: desenvolvera uma percepção aguçada das pessoas. A natureza humana não mais era um mistério. Mas esse conhecimento, inicialmente prazeroso, de repente passou a incomodar. No início, muito levemente. Com o passar do tempo – ah, o tempo... invenção da morte, como diria Mário Quintana – o lado obscuro das pessoas passou a lhe atormentar mais e mais.

Já não conseguia esconder o incômodo ao mínimo contato com alguém. Identificava facilmente todos os males da alma: a falta de caráter, de ética, de solidariedade; as atitudes em benefício próprio; a corrupção intrínseca, presente na imensa maioria dos indivíduos; comportamentos que atingiam um nível patológico. Psicopatas, incapazes de sentir remorso.

O que mais o exasperava era a constatação de que nada havia a ser feito. As pessoas simplesmente não tinham dentro de si valores básicos e fundamentais para a convivência em sociedade.

Aquilo foi tomando uma dimensão incontrolável. Não via mais nenhuma vantagem na sua condição. A imortalidade já não era um bônus, mas um imenso ônus. O conhecimento só causava dor. Nada mais fazia sentido.

Andou a esmo pelas ruas e se viu em frente ao maior prédio da cidade. Subiu ao último andar, onde havia um restaurante panorâmico, quase vazio àquela hora. Sentou. Pediu uma água mineral. Sorveu cada gole com estranha satisfação.

Pagou a conta, aguardando pacientemente o garçom retornar com o troco, conferido meticulosamente. Dirigiu-se à janela mais próxima. Observou a minúscula e frenética movimentação de carros e pedestres lá embaixo.

A liberdade estava próxima.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Que pena, Fortaleza!


Uma das derrotas mais doídas - se não a mais doída – nessas muitas décadas acompanhando esporte. E olha que já houve muitas. Acho que a pior havia sido a da Copa de 82, há mais de 40 anos.

Mas essa superou, por vários motivos. Primeiro por se tratar do time de coração, o que torna a coisa bem mais passional; segundo, pelo ineditismo do título que esteve praticamente nas nossas mãos, pela forma como ele escapou, e pela dificuldade que é chegar lá novamente.

Muito se fala da ascensão assombrosa do Fortaleza nos últimos seis anos, saindo de uma terceira divisão – na qual agonizou por longos oito anos – até se consolidar na elite do futebol brasileiro, com participação em duas Copas Libertadores da América seguidas, mais uma dentre as muitas conquistas de Marcelo Paz, Juan Pablo Vojvoda & cia.

Milhares de torcedores se mandaram pra Maldonado para presenciar o maior jogo da história do Leão. E foram de tudo o que era jeito: de avião, de carro, de moto, de ônibus, via Montevidéu, Buenos Aires, Porto Alegre...

Se pra mim - que nem dou tanta importância assim ao assunto, fui de avião e fiquei num hotel confortável na capital uruguaia - o retorno pra casa foi devastador, fico imaginando como foi a volta  daquele torcedor mais humilde, que respira futebol, que passou dias e dias na estrada em um ônibus desconfortável, e possivelmente dormiu nele durante sua rápida estadia em Punta del Este. Triste demais.

O Fortaleza é reconhecidamente o clube que mais evoluiu no futebol brasileiro em termos de gestão. E essa evolução tem se refletido em ótimos resultados em campo. Portanto, a tendência é seguir protagonista nas diversas competições que participa. Agora, chegar a um jogo da grandeza de uma final de Copa Sulamericana, dependendo apenas da conversão de um pênalti para atingir a glória, míseros 11 metros para uma conquista esportiva gigantesca, milhões e milhões de reais para o cofre do clube e uma visibilidade internacional gigantesca... Quando surgirá de novo uma oportunidade dessa?!

Apesar do grande momento do clube, o tricolor cearense ainda não tem a estrutura de um Athletico (PR), muito menos o poderio financeiro de um Red Bull Bragantino ou até mesmo de um Bahia neste momento. Não vamos nem falar de gigantes como Palmeiras e Flamengo, que estão a anos-luz de distância quando o assunto é grana.

Sejamos realistas: uma empresa qualquer, mesmo muito bem administrada, ainda assim pode enfrentar as intempéries do mercado e ser malsucedida. Se considerarmos o grau de imprevisibilidade do mundo do futebol, nada garante que o Fortaleza chegue tão cedo a um jogo dessa grandeza novamente. Uma pena.

Como diria o poeta: e agora como é que eu me vingo das derrotas da vida, se a cada gol do meu time eu me sentia um vencedor.