sábado, 29 de outubro de 2011

Tadeu


Esses dias lembrei-me do meu saudoso amigo Tadeu, o cara mais assertivo que conheci. Ele nunca ficava em cima do muro em assunto nenhum. Conhecesse ou não. Lembrei também dos nossos tempos de Recife. E da folclórica história do Mário e da água.
Faz muitos anos, mas foi mais ou menos assim: o Tadeu e o Mário dividiam um minúsculo apartamento, no bairro de Setúbal. Nos finais de semana, Tadeu ia religiosamente para Maceió, visitar a família. O Mário, mais raramente, ia a São Paulo, com o mesmo objetivo.
Naquela época era muito freqüente a falta d’água. Quando a situação piorava, o mau-humor crônico do Mário se manifestava, e ele saía gritando pelos corredores do imenso condomínio, pra todo mundo ouvir.
- Quando a merda dessa água voltar, eu vou deixar a torneira aberta pra esvaziar toda a caixa do condomínio. Isso é uma pouca vergonha!
Uma bela tarde de domingo, Tadeu viajando, Mário se preparava para a sua habitual caminhada na av. Beira-mar de Boa Viagem. Ele abre a torneira e... pronto! Sem água de novo! Mário dá sua resmungada básica, sai batendo a porta... e esquece de fechar o registro.
Alguns minutos depois, a água chega, e algumas horas depois o prédio vira um pandemônio. Vários apartamentos são tomados pelo “rio”, cuja nascente é o apartamento dos nossos dois amigos. A unidade mais prejudicada é exatamente a do síndico, que ficava bem em frente, porta com porta.
Lá pelas 10 noite, ao chegar, meio trôpego, com excesso de chope no juízo, Mário percebe a cagada que fez. E vê que a coisa não vai acabar bem. Joga umas roupas na bolsa e vaza, procurando um lugar para passar a noite. A situação foi agravada porque, ao procurar informações, o síndico ouviu do porteiro do prédio que “... o seu Mário falou que ia deixar a torneira aberta de propósito...”
Segunda-feira pela manhã, Tadeu chega de Maceió direto para o Banco. À noite, chegando em casa, é chamado para uma reunião de condomínio, convocada às pressas. Vai direto pra lá, sem passar pelo apartamento. Chega atrasado, mas a tempo de ouvir o síndico bradar:
- Tem uma coisa! A próxima vez que isso acontecer, pode ser o apartamento do presidente da república! Eu ponho a porta abaixo e desço o cacete! Isso é inadmissível!
Sem saber direito do que se trata, inteira-se da situação com o vizinho, que lhe conta o ocorrido, mas ainda sem saber que era sua unidade era o pivô da história. Até o síndico, cada vez mais exaltado, complementar:
- Porque se esse povo 402 acha que vai passar impune, está muuuito enganado! Vão se foder!
Caiu a ficha. Tadeu estava sentado na última fileira de cadeiras. Calmamente, levanta o braço e pede a palavra.
- Desculpe, mas o “povo” do 402 está aqui. Vamos combinar o seguinte. Da próxima vez que faltar água, eu mesmo vou deixar a torneira aberta.
E cada vez mais calmo, mais pausado.
- Mas fiquem tranqüilos. Não vai precisar ninguém derrubar minha porta, pois ela vai estar aberta.
E mudando radicalmente o tom:
- AGORA EU QUERO VER QUEM É MAAACHO PRA ENTRAR NA MINHA CASA! VAI SER RECEBIDO À BALA! E SE ALGUÉM QUISER SE ADIANTAR, PODE SE APRESENTAR AGORA, PRA GENTE JÁ RESOLVER ISSO!
Tadeu era gordo e baixinho, mas nessas horas virava um gigante.
- Não, seu Tadeu, o que é isso... Aqui todo mundo é civilizado, vamos resolver tudo na paz...
Completamente alterado, Tadeu já estava de pé.
- AGORA É NA PAZ, É CIVILIZADO! ANTES IAM DERRUBAR, QUEBRAR TUDO! SÓ QUE VOCÊS MEXERAM COM O CARA ERRADO!!
Segundo relatos, até tiro pra cima o Tadeu teria dado. Mas isso é conversa. Ele resolveu o assunto só na verve oratória. Todos foram dispersando, a reunião foi rapidamente encerrada e nunca mais se falou do assunto. “Seu” Tadeu passou a ser temido, tratado com todo o cuidado e até admirado por alguns desafetos do síndico. Já o Mário nunca mais deu as caras por ali.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Em Cartaz


O incêndio que consumiu três salas de cinema na Academia de Tênis decretou o encerramento das atividades daquele importante espaço cultural de Brasília. Já faz mais de um ano que os cinéfilos da cidade estão órfãos de produções independentes, ou pelo menos fora do circuito dos shoppings. Se comparada com algumas metrópoles do país, Brasília ainda tem um número razoável de salas. Apesar disso, a diversidade é baixa e procurar um bom filme alternativo não tem sido uma tarefa fácil.

Nesse contexto, a mostra CCBB Em Cartaz, entre os dias 11 e 30 de outubro no Cine Brasília, é um presente para os candangos. São quinze filmes inéditos na Capital. Surpreendentemente, as primeiras sessões não têm lotado o antigo e confortável cinema do eixinho sul... e olha que a entrada é franca.

Aproveitei o feriado desta quarta-feira para assistir ao filme francês “Esses Amores”, de Claude Lelouch. O septuagenário diretor faz uma espécie de revival à sua trajetória profissional num belo filme, que não foi bem recebido por alguns críticos, talvez por conta de sua, digamos, heterogeneidade.

Como sempre, não gostei do título em português. Acho a expressão sem peso. Daqui a uns quinze dias, se alguém perguntar, já não lembro mais o nome do filme. De qualquer forma, tenho uma birra com distribuidores, até porque, o original - Ces Amours-là – significa exatamente isso, ou Esse Tipo de Amor, numa tradução literal. O título em inglês – What Love May Bring, ou O Que o Amor Pode Trazer – consegue ser ainda mais piegas.

Apesar de certa liberdade no estilo e na estética – principalmente no início e no final -, não vá esperando um filme “cabeça”, de difícil entendimento, justificativa para muita produção mal-feita que vemos com freqüência por aí.

A trama é consistente, a trilha sonora é belíssima – interpretada de vez em quando pelos protagonistas, embora não seja um musical – direção, elenco, figurino, maquiagem... tudo funciona.

O filme gira em torno da bela Audrey Dana, no papel da inconseqüente Ilva Lemoine. Sua intensa vida pessoal tem como pano de fundo os acontecimentos históricos relacionados à ocupação francesa pelo nazismo na segunda grande guerra, mas se estende por boa parte do século XX.

Somente ao apagar das luzes é que Lelouch escorrega um pouco, utilizando a receita pronta dos dramalhões americanos, ao forçar um desfecho água com açúcar, previsível. Isso, no entanto, tem a ver com o tom de comemoração e despedida utilizados pelo diretor, o que contribui para irmos embora com uma sensação de leveza e a remota esperança de que, quem sabe também na vida real, tudo irar conspirar para um final feliz.

Talvez aí resida a magia do cinema.

domingo, 9 de outubro de 2011

Desescrevendo


Acredito que a criação possa ser motivada por diferentes fatores: o talento – claro -, a droga e o sofrimento. Talento eu não tenho; drogas, só aquelas que os psiquiatras, ciclicamente, empurram em mim, na tentativa e erro, numa total falta de convicção. Mas essas não me levam a produzir nada de muito útil. Restaria uma última alternativa: o sofrimento.

Acreditando nisso, há algum tempo comecei a escrever um livro, cujo título provisório era “Memórias de um Idiota do Mercado”. As primeiras páginas surgiram rápido, e foram se multiplicando.

Com o tempo, a autocrítica exacerbada, o perfeccionismo e a constatação de que eu era um mau escritor, produziram um fenômeno curioso. Comecei a “desescrever” – permitam-me o neologismo. No início eram apenas retificações. Na sequência, parágrafos inteiros foram desaparecendo. Uma espécie de Benjamin Button da likteratura. Voltei à estaca zero.

Conheço algumas pessoas que "cometeram" livros. Livros ruins. O pseudoescritor é um chato. Ele tem que apelar para os conhecidos. Dentre esses, há os que não toleram ler – a maioria, aliás. Uns poucos gostam. Mas certamente têm algo melhor para consumir. Poucos conseguiram ler a maioria dos grandes autores. Porque deixar de ler Mann, Joyce, Gabo, Proust, para perder seu tempo com... Sérgio Camelo?!

O mundo, certamente, não vai sentir minha falta.

A propósito, acabo de ler Os Espiões, de L. F. Veríssimo. Horroroso. Estou lendo Misto-Quente, de Bukowski. Autobiográfico (como todo Bukowski), deprê, simples, direto, único. Excepcional.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Nossos comerciais, por favor!


Os mais novos não vão entender o título, mas esse era o famoso bordão de Flávio Cavalcante, um polêmico apresentador de TV nas décadas de 60 e 70, ao chamar o intervalo de seu programa de auditório.

Antes de entrar no Banco do Brasil, nos meus tempos de publicitário, - meados dos anos 80 – a propaganda em Fortaleza era incipiente e insipiente, por assim dizer. Muitos efeitos especiais que atualmente se fazem com extrema facilidade num software qualquer de computação gráfica, com poucos toques de teclado, naquele tempo exigiam um grande trabalho artesanal. Era o caso das “assinaturas” dos comerciais. Lembro de um VT (será que eles ainda têm esse nome?) em que o cliente pediu que a propaganda encerrasse com a imagem de uma de suas lojas, sendo que a logomarca teria que sair girando e crescendo, até encher toda a tela do televisor.

Se fosse uma imagem estática, era trivial, mesmo na pré-história da publicidade cearense. Era só filmar a fachada e sobrepor a marca com um efeito de chroma key (isso nós tínhamos!), que consistia em “recortar” o azul de uma cena, trocando o fundo da imagem por outra qualquer. Naqueles idos já existiam mesas de switcher que faziam o recorte por temperatura de cor. Mas as emissoras de TV de Fortaleza – que locavam os equipamentos para nossas edições - ainda não haviam adquirido essa novidade.

Bom, mas o problema era fazer a imagem sair girando. Tivemos que chamar um marceneiro para construir uma geringonça com uma manivela, pintar de azul, colar a marca do cliente e, na hora da filmagem, ter um trabalhão para eliminar as sombras.

Lembro de outro comercial, bastante simples, encomendado por uma construtora, cujo roteiro consistia em mostrar o sol nascendo durante trinta segundos, com uma música clássica ao fundo e a assinatura “Pense no amanhã, compre um imóvel hoje”.

Parecia tranqüilo: bastava escolher a locação para a filmagem (Praia do Titanzinho), selecionar a trilha sonora (optei pela nona de Beethoven) e agendar o estúdio para edição.

No mais, era acordar cedo e rezar para que o sol não nascesse encoberto. Se isso ocorresse, o único jeito era esperar pelo dia seguinte. Mas, na hora H, o Firmino, cinegrafista da TV Verdes Mares – o bicho era bruto, mais grosso que papel de enrolar prego – com seu sotaque forte de Catolé do Rocha, interior da Paraíba, bateu o pé e determinou: - não vamos filmar! Os raios do sol vão queimar o viewfinder!

Fiquei meio zonzo, sem saber exatamente que diabos era aquilo. Iniciamos uma discussão acalorada. Porque não falou antes? Tinha que ser agora, às seis da manhã?! As coisas só se acalmaram quando, depois de uns quinze minutos de bate-boca, surgiu uma alternativa: filmarmos o pôr-do-sol (a luz branca do amanhecer é que “ofende”, dissera o Firmino) e, na edição, retroagir a imagem. E assim foi. A cena ficou até mais bonita, mas quem já viu um sol nascendo avermelhado?

Num outro VT, o criativo diretor de arte me passou um roteiro com um elefante circulando no supermercado, fazendo compras. Pensei em usar cenas de arquivo, fazer uma tromba artificial e usar closes dessa tromba “vestida” no braço pegando as mercadorias e colocando no carrinho. Mas o criador ficou puto comigo e exigiu um elefante de verdade. Para ele era fácil, sentadão numa máquina de escrever Olivetti só viajando, e depois eu que me virasse com o abacaxi…

Lá fui eu negociar com um circo o aluguel do bendito proboscídeo. O dono do circo – que também era o palhaço, por medida de economia – se mostrou bastante acessível. Forneceria inclusive o domador, que faria o elefante interpretar dignamente seu papel. Estava bom demais para ser verdade. No entanto, na hora do preço, pediu uma fábula. Fiquei revoltado.

- Amigo, eu só preciso do seu elefante por algumas horas, não estou querendo comprar seu circo!

Ofendido, o Bozo cearense encerrou as negociações.

- Procura outro elefante por aí…

Dirigi e editei centenas de comerciais, a maioria de varejo, mas o trabalho que me deu a maior satisfação foi, por incrível que pareça, um programa político para o horário eleitoral. A candidata, Moema São Thiago, era alguém acima de qualquer suspeita: socióloga, engajada, exilada política, fundadora do PDT, pleiteava uma vaga de deputada federal, cargo que era ocupado quase que exclusivamente pelos indicados dos “coronéis” da política cearense, detentores de currais eleitorais. A tarefa, portanto, era árdua. Para complicar, Moema não era conhecida do grande público e o partido não tinha outros candidatos com alguma representatividade, o que aumentava a quantidade de votos necessários à eleição, em função do quociente eleitoral.

Discutíamos sempre cada produção, mas no encerramento da campanha, propus algo diferente. Eu iria editar um programa sem a sua presença, e lhe mostraria depois de pronto. Ela hesitou, mas confiou. Peguei várias fotos de seu exílio em Portugal, chorando, sentada na calçada, caminhando nostálgica pelas ruas de Lisboa. O programa consistia unicamente na apresentação dessas fotos - em preto e branco, para aumentar o apelo dramático – que se alternavam em fusões lentas, tendo ao fundo o fado “Tanto Mar”, criação genial de Chico Buarque, com referências à ditadura reinante no Brasil e em Portugal nos anos 70 e, mais especificamente, à revolução dos cravos de 1974.

Moema emocionou-se, ainda resistiu um pouco, mas acabou liberando a produção, que foi ao ar no último dia do horário político na TV, pouco antes das eleições de 15 de novembro de 1986. Foi um sucesso! Apesar de ser uma figura nova na política convencional, ela foi a única candidata que obteve votos – exatos 83.341 - em todos os municípios cearenses, a segunda mais votada do estado, tornando-se deputada constituinte. Uma vitória inesperada.

Fiz esse trabalho como free lancer, já certo de não receber um centavo, pois ela não tinha onde cair morta. Para minha surpresa, uns quinze dias mais tarde, ao chegar à Terraço, agência de propaganda na qual eu trabalhava, a recepcionista me diz:

- Sérgio, deixaram uma encomenda meio esquisita para você.

Era um saco desses de supermercado, cheio de dinheiro. Não exatamente dinheiro, mas várias moedas e notas pequenas, certamente resultado de uma vaquinha entre amigos. Em valores de hoje, talvez algo em torno de uns duzentos reais.

Há alguns anos, eu estava no Cine Dois Candangos – mais um espaço cultural que desapareceu de Brasília - e revi a Moema de relance. Mas logo as luzes se apagaram, o filme começou e não conseguimos conversar. Ficou a lembrança daqueles tempos de sonhos e ideias.