quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Nossos comerciais, por favor!


Os mais novos não vão entender o título, mas esse era o famoso bordão de Flávio Cavalcante, um polêmico apresentador de TV nas décadas de 60 e 70, ao chamar o intervalo de seu programa de auditório.

Antes de entrar no Banco do Brasil, nos meus tempos de publicitário, - meados dos anos 80 – a propaganda em Fortaleza era incipiente e insipiente, por assim dizer. Muitos efeitos especiais que atualmente se fazem com extrema facilidade num software qualquer de computação gráfica, com poucos toques de teclado, naquele tempo exigiam um grande trabalho artesanal. Era o caso das “assinaturas” dos comerciais. Lembro de um VT (será que eles ainda têm esse nome?) em que o cliente pediu que a propaganda encerrasse com a imagem de uma de suas lojas, sendo que a logomarca teria que sair girando e crescendo, até encher toda a tela do televisor.

Se fosse uma imagem estática, era trivial, mesmo na pré-história da publicidade cearense. Era só filmar a fachada e sobrepor a marca com um efeito de chroma key (isso nós tínhamos!), que consistia em “recortar” o azul de uma cena, trocando o fundo da imagem por outra qualquer. Naqueles idos já existiam mesas de switcher que faziam o recorte por temperatura de cor. Mas as emissoras de TV de Fortaleza – que locavam os equipamentos para nossas edições - ainda não haviam adquirido essa novidade.

Bom, mas o problema era fazer a imagem sair girando. Tivemos que chamar um marceneiro para construir uma geringonça com uma manivela, pintar de azul, colar a marca do cliente e, na hora da filmagem, ter um trabalhão para eliminar as sombras.

Lembro de outro comercial, bastante simples, encomendado por uma construtora, cujo roteiro consistia em mostrar o sol nascendo durante trinta segundos, com uma música clássica ao fundo e a assinatura “Pense no amanhã, compre um imóvel hoje”.

Parecia tranqüilo: bastava escolher a locação para a filmagem (Praia do Titanzinho), selecionar a trilha sonora (optei pela nona de Beethoven) e agendar o estúdio para edição.

No mais, era acordar cedo e rezar para que o sol não nascesse encoberto. Se isso ocorresse, o único jeito era esperar pelo dia seguinte. Mas, na hora H, o Firmino, cinegrafista da TV Verdes Mares – o bicho era bruto, mais grosso que papel de enrolar prego – com seu sotaque forte de Catolé do Rocha, interior da Paraíba, bateu o pé e determinou: - não vamos filmar! Os raios do sol vão queimar o viewfinder!

Fiquei meio zonzo, sem saber exatamente que diabos era aquilo. Iniciamos uma discussão acalorada. Porque não falou antes? Tinha que ser agora, às seis da manhã?! As coisas só se acalmaram quando, depois de uns quinze minutos de bate-boca, surgiu uma alternativa: filmarmos o pôr-do-sol (a luz branca do amanhecer é que “ofende”, dissera o Firmino) e, na edição, retroagir a imagem. E assim foi. A cena ficou até mais bonita, mas quem já viu um sol nascendo avermelhado?

Num outro VT, o criativo diretor de arte me passou um roteiro com um elefante circulando no supermercado, fazendo compras. Pensei em usar cenas de arquivo, fazer uma tromba artificial e usar closes dessa tromba “vestida” no braço pegando as mercadorias e colocando no carrinho. Mas o criador ficou puto comigo e exigiu um elefante de verdade. Para ele era fácil, sentadão numa máquina de escrever Olivetti só viajando, e depois eu que me virasse com o abacaxi…

Lá fui eu negociar com um circo o aluguel do bendito proboscídeo. O dono do circo – que também era o palhaço, por medida de economia – se mostrou bastante acessível. Forneceria inclusive o domador, que faria o elefante interpretar dignamente seu papel. Estava bom demais para ser verdade. No entanto, na hora do preço, pediu uma fábula. Fiquei revoltado.

- Amigo, eu só preciso do seu elefante por algumas horas, não estou querendo comprar seu circo!

Ofendido, o Bozo cearense encerrou as negociações.

- Procura outro elefante por aí…

Dirigi e editei centenas de comerciais, a maioria de varejo, mas o trabalho que me deu a maior satisfação foi, por incrível que pareça, um programa político para o horário eleitoral. A candidata, Moema São Thiago, era alguém acima de qualquer suspeita: socióloga, engajada, exilada política, fundadora do PDT, pleiteava uma vaga de deputada federal, cargo que era ocupado quase que exclusivamente pelos indicados dos “coronéis” da política cearense, detentores de currais eleitorais. A tarefa, portanto, era árdua. Para complicar, Moema não era conhecida do grande público e o partido não tinha outros candidatos com alguma representatividade, o que aumentava a quantidade de votos necessários à eleição, em função do quociente eleitoral.

Discutíamos sempre cada produção, mas no encerramento da campanha, propus algo diferente. Eu iria editar um programa sem a sua presença, e lhe mostraria depois de pronto. Ela hesitou, mas confiou. Peguei várias fotos de seu exílio em Portugal, chorando, sentada na calçada, caminhando nostálgica pelas ruas de Lisboa. O programa consistia unicamente na apresentação dessas fotos - em preto e branco, para aumentar o apelo dramático – que se alternavam em fusões lentas, tendo ao fundo o fado “Tanto Mar”, criação genial de Chico Buarque, com referências à ditadura reinante no Brasil e em Portugal nos anos 70 e, mais especificamente, à revolução dos cravos de 1974.

Moema emocionou-se, ainda resistiu um pouco, mas acabou liberando a produção, que foi ao ar no último dia do horário político na TV, pouco antes das eleições de 15 de novembro de 1986. Foi um sucesso! Apesar de ser uma figura nova na política convencional, ela foi a única candidata que obteve votos – exatos 83.341 - em todos os municípios cearenses, a segunda mais votada do estado, tornando-se deputada constituinte. Uma vitória inesperada.

Fiz esse trabalho como free lancer, já certo de não receber um centavo, pois ela não tinha onde cair morta. Para minha surpresa, uns quinze dias mais tarde, ao chegar à Terraço, agência de propaganda na qual eu trabalhava, a recepcionista me diz:

- Sérgio, deixaram uma encomenda meio esquisita para você.

Era um saco desses de supermercado, cheio de dinheiro. Não exatamente dinheiro, mas várias moedas e notas pequenas, certamente resultado de uma vaquinha entre amigos. Em valores de hoje, talvez algo em torno de uns duzentos reais.

Há alguns anos, eu estava no Cine Dois Candangos – mais um espaço cultural que desapareceu de Brasília - e revi a Moema de relance. Mas logo as luzes se apagaram, o filme começou e não conseguimos conversar. Ficou a lembrança daqueles tempos de sonhos e ideias.

6 comentários:

  1. Genial, Sergio.
    Parabéns pelo bom humor e fluidez do texto.
    Não precisava entregar a sua idade...
    Deus te ilumine!

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  2. Grande Elias,
    É uma honra ter um leitor ilustre em outro hemisfério.
    Grande abraço!
    Sérgio.

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  3. Puxa primo, que beleza. Foi bom demais ler seu texto. Estava tensa, desencantada de tanta coisa ruim no trabalho, mas aí fui lendo, lendo e absorvendo a beleza de seu escrever. Senti como num velejar, deixando-me embalar nas ondas harmoniosas de suas palavras com cheiro de gente de verdade. Fui junto desde o titanzinho até o espaço cultural de Brasília. Terminou, me sinto outra. Lendo texto de vida simples, como a gente é de verdade.
    Beijo primo,
    Adeliani

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  4. Adeliani,
    Tenho procurado escrever pra diminuir as agruras da vida, que não está fácil.
    Muito legal ver seu comentário.
    Um grande beijo, pra você e o resto da família.
    Sérgio.

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  5. Sérgio, excelente texto, bom de ler. Suas historias sao bacanas. Um grande abraço. Elemer.

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  6. Valeu, grande Elemer. Obrigado pelo prestígio. Aproveite e veja o texto Bola Murcha, no qual eu "elogio" seu Flamengo. Grande abraço.

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